Constelação de Tião l 2016

MEU ENCONTRO COM TIÃO

Alexandre Sequeira

Costumo dizer que nunca tenho uma ideia muito clara de como será a maioria de meus trabalhos. Eles se fazem a partir do encontro com outras pessoas, ganhando forma por meio do convívio e das trocas simbólicas que com ele se estabelecem. Para mim é inconcebível a ideia de me lançar a esses encontros com alguma questão já fechada ou predefinida. Não foi diferente neste trabalho desenvolvido nos últimos meses na cidade do Rio de Janeiro por solicitação do Museu de Arte do Rio – MAR.

As ações colaborativas que já se estabelecem entre o Museu de Arte do Rio e as comunidades situadas em seu entorno, por meio do programa Vizinhos do MAR, me estimularam a buscar nesses redutos um ponto de partida para essa nova proposição. Um acontecimento foi absolutamente determinante para deflagrar o início do trabalho: o encontro com a obra de Tião, um fotógrafo do Morro da Providência. Em outubro de 2015, Tião faleceu, deixando no quarto em que morava uma expressiva produção fotográfica realizada entre 1960 e 1980. Sem ter onde ser acondicionado após sua morte, esse espólio foi entregue por sua irmã a Aline Mendes. Aline desenvolve ações na área da arte e da cultura no Morro da Providência e, consciente da importância de preservar o material, achou por bem trazê-lo para o Museu de Arte do Rio – MAR. Uma mala e algumas sacolas com documentos pessoais, ampliações fotográficas, negativos em cor e preto e branco, além de quase duas centenas de monóculos, revelavam, pelo olhar de Tião, uma intensa vida social que animava a comunidade nessas décadas.

Convidado pelo MAR a analisar o material, dei-me conta – muito em função da natureza das imagens – de que provavelmente estava diante da produção de um retratista social do bairro. Alguém que realizava serviços fotográficos a partir da demanda da comunidade. Era grande o número de fotografias de casamentos, batizados, aniversários, além de outras reuniões mais informais ou acontecimentos sociais, como o Carnaval. O fato de ter desenvolvido a atividade de retratista em determinados momentos de minha vida profissional – como no tempo de convívio com os moradores da vila de Nazaré do Mocajuba, no interior do Pará – fez com que me sentisse imediatamente identificado com Tião.

Ao longo dos dias em que me dediquei a apreciar sua produção, pensei, por vezes, ser o próprio Tião. Tentava imaginar o que porventura o teria provocado em cada tarefa; suas escolhas por determinados ângulos, seus enquadramentos, a opção por determinadas locações. Senti uma curiosa sensação de bem-estar e conforto ao reconhecer, não na fisionomia, mas numa atitude, meu vulto interposto no gesto de alguém. Como, quase sempre, prospecções desse tipo não apontam respostas, mas levantam questões, algo relacionado à natureza das imagens passou a me intrigar. Se provavelmente tais registros fotográficos haviam sido solicitados por alguém, por que ainda estariam em posse de Tião? Teriam os solicitantes desses eventuais serviços visto o resultado ou recebido alguma cópia desse material? Tal inquietação me lançou ao desafio de, com a ajuda de Aline, tentar reencontrar alguns dos fotografados. Não foi tarefa fácil, visto que Tião havia interrompido suas atividades de fotógrafo em meados da década de 1980, o que representava um hiato de cerca de 30 anos.

Ao longo desse tempo, muitos dos retratados já haviam falecido e a geração mais nova nem sequer tinha ouvido falar de Tião, quanto mais de seu papel de fotógrafo do lugar. Mas o destino, mais uma vez, me reservou gratas surpresas. Dona Luiza e dona Ondina – duas antigas moradoras da Providência com quem tive a satisfação de estabelecer contato – não apenas conheciam Tião, como foram fotografadas por ele. As conversas que tivemos trouxeram de volta preciosas recordações de seu convívio com Tião; propiciaram a emoção pela entrega de encomendas fotográficas que chegavam com quase 30 anos de atraso; como também suscitaram a esperança de que nosso encontro pudesse representar um ponto de partida para o resgate da história de Tião no Morro da Providência.

A extensão do acervo fotográfico produzido por Tião ao longo dessas quase três décadas faz com que a ação por mim desenvolvida represente tão somente um disparador para possíveis construções de entendimento da importância da figura desse profissional quase esquecido.

A Constelação de Tião  pode ser, quem sabe, um ponto de partida para conversas e tomadas de consciência sobre a rica e intensa vida que animava e anima a vida no Morro da Providência. Que suas estrelas sigam brilhando, Tião!

Soube que….

Angélica Padovani

Tião nasceu em 29 de abril de 1942, no distrito de Tocantins, Minas Gerais. Filho de mãe branca e pai negro, o sexto de uma família de dez, Tião tinha a pele mais escura que seus irmãos, ao ponto de os meninos queimarem espigas de milho e ficarem dizendo que se parecia com ele para fazer chacota. O menino de pele escura e cabelo liso ficava bravo. Tião era o orgulho do pai porque havia completado o 4º ano primário e, graças a essa esperteza, podia soltar pipa nas férias. “Só os que estudavam podiam soltar pipa, os outros tinham que trabalhar na roça”, contou -nos Isabel, sua irmã. Ele veio jovem para a cidade, numa idade que Isabel não encontra na lembrança. A diferença entre eles era de nove anos. Tião veio cedo morar no Rio, serviu às Forças Armadas, estudou mecânica de automóveis, trabalhou como mecânico e depois como motorista na Casa da Banha. Nos fins de semana, fotografava os moradores do Morro do Pinto, da Providência e redondezas. Perguntei se ela tinha lembrança de como Tião começou a se interessar por fotografia e Isabel não sabia dizer. A falta de convívio provocada pela distância não dava pistas, mas ela se lembra de que, em uma de suas visitas à família, ele já chegou levando uma câmera. Tião fez curso de fotografia por correspondência no Ensino Técnico Paulista. Seu pai só estudou até a 2ª série primária, o que lhe deu saber suficiente para redigir cartas para ele e os demais. O pai, assim como o filho, também ofereceu “serviços à comunidade”, cortando o cabelo e fazendo a barba do povo do lugar.

Dá pena não poder voltar no tempo senão pelas fotos de Tião, resgatadas num quartinho na Rua do Pinto. Fotos de família, como as que Isabel guardou para si. Negativos positivos por manter o anonimato dos personagens, em imagens que nunca se revelam. Imagens de dívidas nunca resgatadas. Queria muito saber o que disparou em Tião o desejo de fotografar. Será que foi uma visão empreendedora, um jeito de aumentar as economias, uma vontade de ser artista, se integrar no universo do morro, viver vida de segunda mão? Queria saber o que ele fazia quando não estava fotografando ou bebendo. Quando ele parou? Parou? Quem eram os amigos mais próximos de Tião? E as mulheres que cruzaram sua vida? O que elas poderiam contar?

Tião era homem gentil, amigo de todos. Soube que, enquanto ele se aproveitava da bebida, as pessoas se aproveitavam dele. soube que a cama era maior que o quarto. Soube que estava com problemas de pressão, que caiu da escada, bateu a cabeça, foi parar no hospital e nunca mais voltou. soube que a irmã passou pela casa dele para pegar uma muda de roupa: “É para ele ter roupa limpa quando sair do hospital”, ela disse; e que a senhoria lhe ofereceu água, café e, já sem ter mais nada que oferecer, ofereceu-lhe a verdade: “Tião faleceu ontem, você não ficou sabendo?”. Não, ela não estava sabendo, ela chega tarde do trabalho, o telefone não funciona, a médica disse que ele estava melhorando, ela foi em busca de roupa limpa no dia 30 de novembro de 2015.

Onde termina a história de Tião é também onde começa a nossa. Aline Mendes, vizinha do MAR, lembrou de Tião durante uma Conversa de Galeria. Aline já o conhecia, ele era conhecido dos pais dela, e tanto ela como sua família foram fotografados por ele. Aline foi atrás de Tião e contou dele para Janaina Melo, que contou para Clarissa Diniz, que juntas contaram para Alexandre Sequeira, que agora conta aqui para vocês. Mas e o caminho do meio? Por onde andará?

Nossos agradecimentos a Isabel Pires de Oliveira, que cedeu seu tempo e as imagens do acervo pessoa de Tião, para compartilhar com todos a memória do lugar no lugar da memória.

TIÃO

Aline Mendes

A lembrança de Tião. Eu havia sido escolhida para fazer a Conversa de Galeria do Café com Vizinhos, na exposição Rossini Perez, entre o Morro da Saúde e a África. Durante minha fala com o público, lembrei-me de Tião, fotógrafo de minha infância no Morro da Providência.

A procura. Logo após a Conversa de Galeria, Tião não saía de minha memória. Dei início a uma busca por informações que me levassem até ele. Fui ao vendedor de frutas que trabalhava embaixo do viaduto de frente para o posto de saúde e deixei um bilhete com meu nome e telefone. Ao retornar à barraca um tempo depois, Tião havia deixado para mim um bilhete com meu nome e telefone. Ao retornar à barraca um tempo depois, Tião havia deixado para mim um bilhete com seu número anotado, mas, quando eu tentava ligar, ia diretamente para a caixa postal, uma pena! Um tempo depois fui ao conjunto de prédios dos portuários, achando que ele poderia viver por lá. Só que não! Até que, ao lembrar do comentário de que Tião gostava de uma branquinha (cachaça), fui a um bar da Providência onde o pessoal das antigas costuma ir e, mais uma vez, ao perguntar ao dono do bar se ele sabia do fotógrafo, a resposta foi negativa. Ele era um novo proprietário e não o conhecia. E, mais um dia, caminhando para o Santo Cristo à procura de Tião, encontro, na porta do mesmo bar, sr. Jorge, viúvo de uma prima que, conversando comigo, simplesmente aponta: “Olha! Ali, aquela casa rosa, é a residência do Tião”.

O encontro com Isabel. No dia em que finalmente decidi ir até a casa de Tião e aproveitar para bater fotos de um futuro local para uma intervenção do Providência Sustentável (projeto que desenvolvo no Morro da Providência), me deparo com uma ambulância e nem sequer me aproximo do local, achando melhor voltar outro dia. Ao retornar, fui recebida por um jovem vizinho que me informou que Tião havia sofrido um tombo na escadaria e se encontrava internado. Mal sabia eu que aquela ambulância estava levando Tião para o hospital. No dia seguinte, fui até lá e não pude fazer a visita, pois, como não era da família, a direção não autorizou minha entrada. Retornei no dia posterior e esperei por sua irmã, dona Isabel – no dia em que soube de seu acidente, o vizinho me disse que havia entrado em contato com ela. Fiquei de plantão na sala de visitas aguardando a chegada da única pessoa que possibilitaria finalmente meu encontro com Tião. Fui chamada e avisada de que a senhora na minha frente era a irmã do paciente. Senti medo de receber um não. Contei para dona Isabel toda minha trajetória e subimos para a visita. Um reencontro após décadas, apenas para me despedir e receber inconscientemente o bastão da memória. Tião faleceu na mesma semana.

O quarto de Tião. Fiquei à disposição de dona Isabel e, ao ajudar na retirada dos pertences de Tião de seu quartinho, poucos dias após sua morte, tive um sentimento estranho: por um lado, o prazer de conhecer o ambiente onde ele viveu por mais de 30 anos, por outro, o desprazer do motivo real de minha presença – seu falecimento. Em meio à retirada dos objetos, me deparo com muitas bolsas de mercado amarradas embaixo da cama, no guarda-roupa e embaixo de sua minúscula pia de cozinha. Ao tocar nos primeiros sacos e ver que se tratava de seu trabalho fotográfico, uma força ergue meu corpo abatido pela tristeza e, como uma máquina, realizo num dia o trabalho de desmontagem que levaria muito tempo para ser feito.

A memória da Providência. Recuperar essas imagens significa o resgate da memória no período de um dos mais belos e felizes momentos já vividos na favela mais histórica de nosso país. Tempo em que a noiva passava na porta, e o som do Coração das Meninas (bloco de carnaval) invadia minha casa. A festa junina na praça, que era a mais esperada por reunir muitas famílias em um único lugar. As mulatas desciam para o samba e o Santiago logo tocava seu pandeiro até o dia seguinte. Minha tia Ester ouvindo clássicos do samba na vitrola, os amigos chegando com cerveja e sardinha frita, entre centenas de outros lindos e saudáveis momentos.

A figura de Tião. Não é tão simples descrever Tião. Mas, para mim, ele foi um homem apaixonado pela fotografia, que conquistou uma favela através de sua lente, com seu enorme carisma e sua eterna generosidade.

 

 


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